ARREPENDIMENTO: O LEMA DA IGREJA
João Batista era um pregador objetivo. Seria impossível ouvir um sermão deste profeta e não pegar claramente a mensagem transmitida. A palavra chave de seu apelo era: “Arrependei-vos!” (Mateus 3.2). O batismo que realizava era um “batismo de arrependimento para perdão dos pecados” (Marcos 1.4; Lucas 3.3; cf. também Mateus 3.11; Atos 13.24; 19.4). João propunha mudanças!
Exigia o chamado “fruto digno do arrependimento” (Mateus 3.8; Lucas 3.8), ou seja, uma mudança de vida. Ele era muito prático nesta questão: nada ficava na teoria ou apenas no ideal. Para as multidões em geral ele dizia: “Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo”. Para os coletores de impostos afirmava: “Não cobreis mais do que o estipulado”. Para os soldados sua pregação era: “A ninguém maltrateis, não deis denúncia falsa e contentai-vos com o vosso soldo” (Lucas 3.10-14). Para o rei Herodes, que vivia com a esposa de seu irmão, a pregação não fazia rodeios: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão” (Marcos 6.18). A mensagem é sempre a mesma: “Arrependei-vos!”
Jesus pregava a mesma mensagem: “Arrependei-vos!” (Marcos 1.15; Mateus 4.17). Para Jesus, sem arrependimento só resta a condenação (Lucas 13.1-10). As cidades e pessoas que não se arrependeram receberiam um julgamento severo (Mateus 11.20; 12.41; Lucas 10.13; 11.32). Os doze também pregaram a mesma mensagem (Marcos 6.12). De fato, a grande alegria de Deus é o arrependimento do pecador (Lucas 15.7,10).
Arrependimento é o apelo da pregação para os judeus (Atos 2.38; 3.19), para os gregos (Atos 17.30) e para todos (Atos 26.20). A pregação do evangelho propõe perdão para todos, mediante arrependimento (Lucas 24.47).
Contudo, o arrependimento não fica obsoleto com a conversão (Atos 3.19) que é consumada no ato do batismo (Atos 2.38). O arrependimento é uma constante na vida dos cristãos. Se houver erro na vida de um cristão, o que se espera dele é o arrependimento (Atos 8.22; 2Timóteo 2.25; 2Coríntios 7.9-10; cf. também Tiago 5.19-20).
Arrependimento é um tema que se aplica a igrejas inteiras. De fato, no Apocalipse, Jesus dita sete cartas para sete congregações localizadas em cidades da chamada Ásia Menor. Nestas cartas, o verbo “arrepender-se” ocorre oito vezes (Apocalipse 2.5 [duas vezes], 16, 21 [duas vezes], 22; 3.3, 19). A maioria das igrejas recebe a ordem de arrepender-se (somente Esmirna e Filadélfia não a recebem). As congregações que têm algo de errado precisam arrepender-se e voltar ao ensino de Jesus.
A ordem de arrependimento pressupõe que o pecado pode e deve ser evitado que a virtude e a verdade podem ser praticadas. O mandamento do arrependimento pressupõe que o ensino de Jesus e de seus apóstolos não é um ideal utópico, mas prático e praticável. Arrependimento não é opção ou sugestão, é mandamento integrante da conversão e da vida cristã.
O termo grego que subjaz nossa palavra para arrependimento é metanoia, μετάνοια, e o verbo para arrepender-se é metanoein, μετανοεῖν. Eles têm sido traduzidos de diversas formas nas nossas traduções modernas como se pode notar na tabela abaixo que leva em conta 20 traduções modernas na Bíblia em língua portuguesa:[1]
Versões bíblicas consultadas[2] | Tradução: metanoia e metanoein |
Versões de Almeida (ARA, ARC, NAA), TB, BLH, NTLH, BJ, NBP, Dutra Dias, NVI, NVT | Arrependimento, arrepender-se |
Trad.CNBB, TEB, VPaulinas, EdPast | Conversão, converter-se |
Frederico Lourenço | Mudança, mudar de mentalidade |
BAM(1971) | Conversão, fazer penitência |
Matos Soares | Penitência, fazer penitência |
Nova Bíblia Viva | Decisão de voltar as costas (para o pecado), arrepender-se. |
Bíblia Viva | Decisão de voltar as costas (para o pecado), afastar-se (dos pecados) |
O que ser percebe no esforço dos tradutores, é levar em conta todo o processo envolvido na palavra. As traduções que optam pela palavra “conversão” parecem estar buscando enfatizar que deve ocorrer uma mudança de curso, uma mudança de vida e não apenas um vago sentimento de remorso ou tristeza pelo pecado realizado. As versões que optam pelo termo “arrependimento” vinculam o termo com a decisão e a ação, não o deixando como um mero sentimento. Versões mais influenciadas pela Vulgata usam o termo “penitência”, que pode evocar rituais de arrependimento, mais do que uma mudança de vida, contudo, que acentuam, até certo ponto, a necessidade de algum ato de reparação em algumas das ações de arrependimento. A versão mais dada à etimologizações falam de “mudança de mentalidade”, evocando a formação da palavra grega. Por fim, as paráfrases dão o sentido de decisão de mudar em atitudes concretas como “dar as costas” e “afastar-se”.
Em suma, arrependimento, conversão, mudança… tudo fala de uma postura decidida e clara de tomar novos rumos, abandonando o erro, o pecado em favor da vontade de Deus.
Podemos, com segurança, dizer que “Arrependimento é o lema da igreja”, tanto em sua pregação aos não cristãos como em sua atitude para com seus próprios erros e desvios do ensino do Mestre Jesus. A igreja verdadeira prega e vive o arrependimento: precisa viver o arrependimento para pregar o arrependimento (1Coríntios 5.12-13).
Contudo, para nossa tristeza, boa parte do chamado “mundo cristão” não quer mais se arrepender. No aspecto do comportamento pessoal o que mais se procura é bênção e vitória, e não transformação. No aspecto institucional, congregacional e doutrinário, as igrejas não buscam mais a verdade e a prática do cristianismo apostólico, mas estão satisfeitas com as “várias opções” oferecidas pelas divisões do cristianismo moderno.
No passado próximo, as coisas não eram assim. Cada grupo afirmava que o seu era o certo e que todos os outros não eram tão certos ou estavam errados. Assim, cada grupo, de uma forma ou de outra, buscava o “arrependimento” dos outros grupos, em prol do que eles julgavam ser a verdade. Esta atitude está desaparecendo. Simplesmente o mundo religioso desistiu da busca da verdade e aceita as “várias interpretações” ou “varias leituras” da Bíblia. Não se prega mais “arrependei-vos”, mas “adaptai-vos” ou “aceitai-vos”.
Certo estudioso do cristianismo primitivo, confessa, logo no início de sua obra, que “o estudo do cristianismo primitivo não busca a emulação de um modelo puro e perfeito, simplesmente porque tal modelo nunca existiu” (SIEPIERSKI, s.d., p. 12). Ele afirma que não podemos imitar o cristianismo primitivo porque havia modelos diferentes de cristianismo em Jerusalém, Antioquia, Corinto e Roma, de forma que só podemos aprender com seus acertos e erros, mas que buscar nostalgicamente alguma perfeição, não é possível. Tal declaração poderia ser aceita na íntegra se o autor depois afirmasse que devemos buscar o cristianismo original no Novo Testamento e não na história do cristianismo, mas não é isto que o autor faz. Ele não acredita em “cristianismo originário”, mas apenas em uma pluralidade na qual não acredita haver unidade. Nisto discordamos.
Afirma-se que o cristianismo primitivo, puro e modelar nunca existiu! Outro historiador diz: “Nunca houve uma ‘fé cristã originaria’ ou uma ‘linguagem cristã nativa’” (WILKEN, 1972, p. 170). A tese é que a diversidade do cristianismo sempre foi imensa que não se poderia descobrir qual delas é a original, nem se houve uma forma original. Na verdade, o cristão não pode voltar às suas raízes, porque, no ver destes homens, eles não têm raízes. Tais ideias tem sido veiculadas modernamente à partir de obras como de Walter Bauer (1971), e por uma série de outros escritores que aceitaram as ideias dele: para eles, as direferenças são tantas que só se pode falar de muitos cristianismos. Um ataque simples e devastador deste ponto de vista exagerado da diversidade do cristianismo primitivo é feito em dois artigos, que atualmente se transformaram em um livro, do prof. Carson (1992, p. 35-52; 1993, p. 35-61).
Para chegar a estes pontos de vista, estes estudiosos têm que abandonar a Escritura que, na diversidade de estilos, culturas, ênfases e circunstâncias, afirma a existência de uma só igreja, uma só doutrina, um só batismo, uma só esperança, um só Espírito, um só Senhor, um só Deus e Pai (Efésios 4.4-6).
Para eles, um João Batista que viesse pregando arrependimento das práticas eclesiásticas não autorizadas por Deus ou das doutrinas humanas, seria um sonhador que pensa que só ele está certo. Precisaria ter sua cabeça cortada pelo bem estar da “tolerância” religiosa.
Para eles alguém que afirme, como Jesus, que “toda planta que meu Pai celestial não plantou, será arrancada” (Mateus 15.13), é taxado de um pregador extremista e “não-politicamente-correto”. Um escritor que afirme, como Paulo, que as falsas doutrinas são coisas do demônio seria considerado um sectário sem amor cristão (1Timóteo 4.1).
Para eles, arrependimento só para os “não cristãos”. Uma vez dentro de uma igreja qualquer, não é mais necessário questionar a verdade do ensino e da prática. Se a igreja tem costumes, doutrinas e práticas contra as Escrituras ou não autorizados, isto não precisa ser corrigido: o arrependimento para as igrejas é uma coisa obsoleta!
Como discípulos de Cristo, concordamos com Jesus e seus apóstolos. Assim como indivíduos em pecado precisam de arrependimento, igrejas que pratiquem erros doutrinários ou de qualquer outra natureza precisam se arrepender. Precisamos de ortodoxia (doutrina correta) e ortopraxia (prática correta) nas igrejas de hoje.
Não é orgulho nem ingenuidade exigir arrependimento: é seguir Jesus.
– Por Álvaro Pestana
Álvaro Pestana faz Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Mestre em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo – USP, Especialista em Docência Superior de Teologia pelas Faculdades Batista do Paraná – FABAPAR, Especialista em Educação a Distância pela Universidade da Grande Dourados – UNIGRAN, Bacharel em Teologia pelo Seminário Bíblico Nacional – SBN (Convalidado pela FACETEN) e Bacharel em Química pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professor de teologia e estudos bíblicos no Seminário Teológico EBNESR e na Escola de Teologia em Casa – ETC. alvarocpestana@gmail.com.
Veja nossas outras publicações:
https://link.ebnesr.com.br/foi-por-minha-causa/
https://link.ebnesr.com.br/adorarando-o-espirito-santo/
https://link.ebnesr.com.br/voce-e-um-martir-ou-um-monge/
[1] Usamos aqui, para checar as traduções, apenas Marcos 1.4 e 14
[2] ARA – Almeida, Revista e Atualizada; ARC – Almeida, Revista e Corrigida; NAA – Nova Almeida Atualizada; TB – Tradução Brasileira; BLH – Bíblia na Linguagem de Hoje; NTLH – Nova Tradução na Linguagem de Hoje; BJ – Bíblia de Jerusalém; NBP – Nova Bíblia Pastoral; DutraDias – O Novo Testamento na tradução de Dutra Dias; NVI – Nova Versão Internacional; NVT – Nova versão transformadora; Trad.CNBB – Tradução da CNBB; TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia; VPaulinas – Bíblia da Edições Paulinas; Ed.Past. – Bíblia, Edição Pastoral; BAM – Bíblia da Editora Ave Maria (1971); Matos Soares – O Novo Testamento traduzido da Vulgata;
Referências:
BAUER, Walter, Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity. Philadelphia: Fortress, 1971.
CARSON, D. A. “Unidade e Diversidade no Novo Testamento” parte 1 in VOX SCRIPTURAE, 2:2 (setembro de 1992), p. 35-52.
CARSON, D. A. “Unidade e Diversidade no Novo Testamento” parte 2 in VOX SCRIPTURAE, 3:1 (março de 1993), p. 35-61.
SIEPIERSKI, Paulo. “A importância do estudo da história do cristianismo primitivo” in HINSON, E. Glenn; SIEPIERSKI, Paulo. Vozes do Cristianismo Primitivo. São Paulo: SEPAL, s.d.
WILKEN, Robert L. The Myth of Christian Beginnings. New York: Doubleday, 1972.